terça-feira, 28 de abril de 2009

III - Convalesença

A vida em si é drástica. Glória bem o sabia agora. Ao menos a vida dela assim era, medíocre e drástica, sem que ela estivesse apta a perceber o grau de intensidade, e sanar a tempo de não sucumbir àquela sua vida tão drástica e medíocre.
O que fazer a não ser resignar-se com as fatalidades de Deus? Um Deus que É de um amor fatal, maniqueísta. Um Deus capaz de provocar o sofrimento nas suas próprias criaturas, afim de levá-las a implorarem ou blasfemarem em Seu santo nome.
Estava de volta à vida comum a todos. Ela era uma “sobrevivente” como afirmara Luciano.
Com as mãos protegidas por um par de luvas de borracha antialérgicas amarelas, Glória começava uma completa faxina na sua casa. Dispensara a diarista. Fazia questão de ela mesma retirar todas as sujeiras, inclusive àquelas escondidas nos cantinhos mais segregados da casa. Tapetes. Todos retirados. Não queria mais nenhuma sujeira indo se esconder por dias a fio sob os tapetes. Aliás, eles, os tapetes não voltariam a fazer parte da decoração da casa. Escondem e acumulam tudo, além de pó.
Glória tirara uma licença no hospital. Licença médica. Stress foi o diagnóstico respaldado por Luciano, que muito inteligentemente – e até gentil da parte dele – inscreveu-se de última hora num congresso de medicina nuclear.
Aconselharam-na a viajar um pouco. Visitar os parentes no interior. Ir para uma praia. Mas Glória, ainda na cama do hospital, antes de ter alta, já planejava fazer essa faxina na sua casa. Não sabe ao certo de onde viera aquela idéia. Mas sentia que a reestruturação da sua vida teria que começar por sua casa. Começou a planejar também pequenos concertos que vinha adiando por falta de tempo. Pensou na decoração. Uma total ausência das preferências de Luciano na escolha dos móveis, utensílios, cores das paredes.
Tudo era de acordo com as escolhas dela. Do tapete na porta da entrada à marca da máquina de lavar roupas. Luciano cuidou apenas da decoração do seu escritório, que só agora Glória se dá conta do quanto destoa do resto da casa. Tanto na decoração quanto na organização.
Não conseguia imaginar como Luciano conseguia encontrar alguma coisa naquele ninho de papéis, livros, marca-textos, lápis, canetas, cd’s, roupas... E, no entanto, com toda essa desordem abusiva, era um cômodo da casa onde se respirava um que de tranqüilidade. Não tranqüilidade propriamente dita, mas uma quietude imune àquele caos.
Pegou de uma vassoura de espanar e começou a faxina pelo teto. A pintura branco-pérola e o lustre herdado de sua tia Magnólia fixado no teto, davam um ar de teto de casa antiga invadindo a modernidade do resto da mobília da sala de estar. Num futuro próximo ela mandaria que ele fosse retirado e o guardaria até devolvê-lo à sua irmã Socorro, que sempre o cobiçou como presente de casamento.
“Não sou feliz comigo mesma.”
Era o pensamento de Glória enquanto espanava e retirava as teias de aranha do lustre empoeirado.
Não era feliz com ela mesma. Não se sentia gente para si mesma. Sabia – até onde alcançava seu novo interesse por si mesma – que cuidava de si mesma, e cuidava numa vigilância repleta de péssimos exemplos recolhidos entre parentes e amigos.
Mantivera-se protegida de tudo e de todos, para ter como se proteger de si mesma. E não havia nem o mais doce ou remota lembrança de ter sido feliz com si mesma, tão empenhada estava em observar os erros e falhas dos outros, numa intransigente determinação em aprender a não cometer tais erros e falhas, mantendo-se assim num patamar de moral insuspeita. Agora percebia que o nome disso também poderia ser hipocrisia.
Mas é que quando sucumbiu numa loucura inócua carregou junto com ela todo aquele confuso e indefinível sentimento.
Foi uma queda profunda no desconhecido abismo do desencanto. Um quê de abandono enraizando-se no coração até torná-lo coberto em demasia para continuar fazendo parte da alma, e apenas a sua função muscular continuava em reverberações ecoadas, o fazendo manter-se pulsante, sufocado e pulsante. Um coração todo contido dentro da própria força. A força que tem um coração quando endurece.
Queria ter-se reerguido ao menos limpa e amadurecida, um pouco que fosse qualquer mudança por mais sutil que fosse, daria a ela um pequeno mérito de amadurecimento.
E limpa. Sem nenhum resquício, nenhuma fagulha, nem um grão da sujeira que tinha causado aquela queda abissal, manchando seus dias, Todos os dias em que mentira sentir uma felicidade comum. Dessas felicidades que todo mundo tem um pouco para mostrar todos os dias, e confirmar todos os dias que “Sim, se é feliz!”.
E aquilo a perseguia durante a noite. Quando ela enfim envolta na escuridão de si mesma, tirava aquela felicidade muito comum e normal. Ela se despia de todos os seus insuspeitáveis disfarces e via-se na sua dor explicitamente.
Toda aquela dor crua de um fruto que nasceu morto. Aquele sentimento que sentia por Luciano era dúbio porque ele já nascera morto, natimorto.
Glória nessas horas sentia suas entranhas se contraírem em câimbras que reprimiam ínfimos e infames desejos. Tão secretos, proibidos, insanos e nocivos, que o corpo debilitava-se a ponto de deixá-la cansada demais até mesmo para dormir.
Ah, dormir... Dormir era como morrer. E na manhã seguinte acordar ressuscitando tudo novamente, num movimento ciclicamente cansativo, tão cansativo...
Porém, nessas horas o corpo não obedecia, e ela não dormia. E aí então, outras emoções muito mais secretas, proibidas, insanas e nocivas realimentavam o fel de cada um dos sentimentos, e ela sofria por cada um deles. Os bons e os ruins, porque todos eles já nasciam mortos.
Não dormia, nem morria. Ficava ali, isolada no seu ressentimento do mundo e da bondosa crueldade de Deus, que parecia assistir a tudo meneando a cabeça positivamente, com um olhar que não se poderia distinguir entre piedoso ou irônico.
Não. Enfim havia chegado à tona de si mesma. Sentira-se a principio ilesa e limpa, mas não. Era superficial aquela sensação de vitória sobre si mesma. Lá dentro – firmemente agarrada nas raízes do coração, ainda mais endurecido – estava a consciência do sentido real daquela sensação de vitória.
E essa vitória era apenas um daqueles resquícios de ódio, desprezo e crueldade, que agia como bálsamo catalisador de emoções.
Lá no fundo ela sabia-se vencida, e isso remetia à derrota, ao fracasso, à autocomiseração. Tudo se alimentando de quaisquer sobras. Uma vez alimentados, tornavam-se fortificante para as raízes que endureciam cada vez mais o coração, de onde vinha um urro de dor causada por esses venenos internos. Glória podia ouvir dentro desses urros – amedrontada com si mesma, por ser capaz de produzir tais pensamentos - um apelo de vingança como único antídoto capaz de salvar o coração do total endurecimento.
Em silencioso desastre sentia a dor da certeza de que tudo enfim ruíra.
Não restara para ela mais que aquela certeza doendo e a fazendo – confusa – determinar que nova pessoa ela iria permitir que saísse dela encobrindo toda aquela dor de não saber o que ela era. Uma nova pessoa sairia de dentro dela escondendo as ruínas da alma. Escondendo aqueles seus pequenos e hediondos crimes. Dentre eles, aquela negação de si mesma, aquela repulsa clemente de si mesma.
Estava só e só... Como deve ser só a alma de quem sente que vai morrer só. Só, como quem acorda sob os escombros do que um dia fora o seu reino, seu domínio. Toda a sua certeza reduzida a escombros angustiantes de coisa concreta que se desfez, mas mantém-se existente. Existindo sem serventia para quem servia, e ali... Existindo. Fazendo ainda parte da memória recente dos dias de serventia. Precisava então transpor tudo para um canto onde um dia pudesse reconstruir-se com o que sobrou de si.
Reconstruir. Restaurar.
Precisava reconstruir a si mesma. Restaurar a vontade das coisas tolas e rotineiras, as horas, os cuidados com todas aquelas coisas já tão postas e sobrepostas, apenas esperando a exploração dos dias.
Há dias Glória não falava com ninguém. Pouquíssimas pessoas souberam do seu “incidente” – como denominou e justificou tão apropriadamente bem, Luciano. Ninguém além de Glória, ele, a enfermeira que a atendeu e a direção do hospital em que ela trabalhava. Calou-se complacente com tudo.
Dentro daquele seu silêncio – também – se calavam em murmúrios seus mais recentes fracassos.
Falhara tanto. Ela já devorara tantas chances de se tornar eterna para alguém. Sempre se prometendo nunca mais, nunca mais...
Agora havia uma esperança incrédula de que enfim chegara aos limites de seus erros e enganos. Havia sim – e sempre houvera – aquela esperança de enfim sobreviver àquela dor, como uma benção curativa e tentar seguir – mesmo que claudicante – sendo uma nova pessoa naquele corpo já acostumado e aceito por todos.
Mas não sabia se teria coragem de seguir sendo seu oposto. Não saberia como seria recebida, e se recebida, será que seria assim aceita? Sem questionamentos, nem surpresas inquietantes, nem perguntas constrangedoras que invariavelmente fragilizariam aquela nova pessoa em que ela se apresentaria.
E talvez, não a acreditassem quando ela respondesse simplesmente:
“Esse é o meu oposto, é assim que sou do outro lado do espelho. Sou eu. Eu sou isso. Sou essa. Sou assim.”
E pior que as perguntas, pior que tudo, seria o descaso, a aceitação rápida demais. Como se todos já a tivessem visto usando aquela faceta de ser a outra pessoa que ela acreditava ser. Ou como se fosse mais uma mera crise de identidade que passaria tão logo ela resolvesse que de nada adiantaria disfarçar-se dela mesma. Pois que em seus olhos todos saberiam ler seus pecados e suas quedas. Tão claramente. Tão claro quanto pode ser claro um dia de luz e calor. Um desses dias de claridade que incentiva tudo a despertar, e recomeçar a contagem do tempo por entre uma coisa e outra a acontecer inevitavelmente.
De repente sentira a inutilidade enfadonha de tudo. Uma inutilidade quase tardia, como tardia era a sua esperança desesperada – e seu medo em ultimar seus anos tricotando sozinha na solidão familiar das tias – quando se casara aceitando as condições de uma solidão maior, porém não visível a olhos nus e comprobatórios. A esses olhos ela seria enfim uma mulher realizada.
Ria-se sempre muito triste intimamente da cegueira de todos, pois, continuara indizivelmente só.
Glória pensava-se muitas vezes, ínfima. Tão – realmente – ineficiente para estar viva. Copiando-se e copiando-se por dias e dias, anos a fio. Apenas sobrevivendo ao tempo que era conferido a ela para permanecer viva...
Nem mesmo chegava a ser um complexo de inferioridade, que era preciso ter tido alguma vez, uma noção correta do que era inferioridade. Não era inferior moralmente, ou religiosamente, ou etnicamente. Não. Não era esse conceito de inferioridade a que se referia. Era como uma falta de conhecimento de si mesma. Porque nunca se permitira ser ela mesma. Um individua.
Vivera até ali, introduzindo como conceito individual seu, o que apenas vira ou ouvira ser pronunciado como bom e correto, sério e justo de acordo com as instituições sociais. Tinha sido essa a vida que sobrepôs sobre a sua própria vida, e como uma cópia carbonada, era assim a sua vida.
Parecia a Glória que não havia mais nada a fazer a não ser deixar explodir o gênesis da sua alma.
Como se fosse urgente e necessário voltar ao pó ainda viva. E recomeçar por si mesma.
Era uma necessidade insuportável de recomeçar de algum ponto que a fizesse sentir – como não lembrava de jamais ter sentido – que havia ainda naquele seu corpo, algum lugar onde ela poderia desmanchar-se em pó, e deste pó mortuário, ela extrairia um pó viçoso a devolvê-la viva para a vida.
Sem que ela percebesse, o dia chegara ao fim dentro do destilar das horas.
Estava exausta. Mas a casa estava irrepreensivelmente limpa. Estava exausta e satisfeita. Em alguns dias procuraria um profissional para as pequenas reformas que já havia planejado. Veria orçamentos e disponibilidades de tempo. Não tinha pressa. Faria aos poucos pequenas reformas, quase imperceptíveis. Mudaria a mobília também, aos poucos. O lustre iria para as mãos de quem sempre o cobiçara.
Os tapetes seriam vendidos ou doados, alguns móveis seriam reformados apenas.
Estava exausta e vazia. E a casa estava limpa.

II - A Primeira Morte

Havia uma cacofonia ilegível dentro daquele silêncio. Aquele silêncio de paredes brancas e cheiro forte de éter – que ela tão bem conhecia.
Estava entre perturbada e sonolenta, mas a sua memória ia ordenando-se aos poucos, numa lentidão angustiante.
Primeiro era preciso identificar onde estava, para imediatamente respirar novamente o cheiro de éter, e ter consciência de que aquelas paredes brancas claustrofóbicas eram de um quarto de hospital.
Em segundo lugar, com a memória já parcialmente restaurada, Glória se perguntava: “O que estava fazendo ali, sozinha, deitada naquela cama de hospital?”
A cabeça começou a rodar dentro de um redemoinho de palavras desconexas que iam e vinham, num vai-e-vem confuso. Sentia-se fraca e abatida, e estava com uma sede terrível.
Os sentidos começaram a tomar formas e ela novamente podia ouvir o eco das palavras de Luciano. As últimas palavras e o estampido da porta sendo fechada atrás dele, e ela deixada no mais cruel silêncio, e toda comprimida num vazio profundo.
“Eu já sei porque você casou comigo. Para me usar. Você me usou esse tempo todo...”
“Eu não sei do que você está falando Glória.”
“Sabe sim. Mas é covarde demais para admitir.”
“Admitir, o quê?”
“Essa sua doença que você esconde atrás de mim... essa doença que é você gostar de homens...”
“Agora chega! Cala essa boca! Você é uma louca, uma desajustada. Você precisa se tratar...”
“Eu preciso me tratar? Eu? Eu sou íntegramente normal. Você é que é uma anomalia social... uma heresia social... E se casou comigo para ninguém descobrir. Nem família, nem trabalho. Você é tão covarde que você precisou se casar comigo para continuar vivendo na clandestinidade essa sua sodomia. Todo o seu segredo assegurado às custas da minha solidão, das minhas carências. Você me usou e me usa!”
“Ah é...? E você Glória? Casou comigo por que? Porque não queria ficar solteirona. Porque todas as suas irmãs – até as mais novas – já haviam se casado, e você lá, vivendo de hóstia e televisão. Definhando num canto qualquer daquela vidinha ridícula e tacanha em que você vivia confinada. E sabe o que mais? Eu quis fazer de você uma pessoa melhor, mas você sempre se inferiorizando mais do que já era. Sem amor-próprio, sem personalidade própria, sem nenhum pensamento legitimamente seu. A sua solidão quem cavou foi você Glória... Acontece que eu não ia ficar aqui embarcando dentro dessa sua presunçosa integridade, ou seja lá o que for que você chame de integridade para um relacionamento a dois... Você se confinou na mediocridade das coisas a sua volta, eu não. Agora você vem com essa acusação leviana, com essa sua grande mágoa de ter sido supostamente usada? Você acha mesmo que eu sou doente? Você não tem respaldo para me acusar de nada... Você é que é uma covarde, uma doente covarde, é você! Eu não Glória, eu admito que cometi pequenos crimes em nome dos meus planos, meus desejos. Porque eu vivo Glória, e essa é a grande diferença entre nós dois, eu vivo, e você apenas sobrevive. E sobrevive mal, porque você é toda ineficiente para viver Glória.”
Foram as últimas palavras de Luciano.
Enquanto procurava as chaves do carro que ele largara em algum lugar sobre a mesa do seu pequeno escritório, Luciano ainda atordoado com a carga negativa desprendida durante aquela discussão, conseguiu ver por entre as palavras insanas de Glória – pela primeira vez, desde que a conhecera – uma tentativa de ser verdadeira.
Pela primeira vez Glória quebrara aquele invólucro hipócrita que a permitia sentir-se superior a todos. Ilesa aos pecados do mundo. Ele a odiava por isso, mas agora Glória dava vazão a uma impulsividade inédita, ao menos para ele.
Na sala, Glória sentada no sofá cor de telha, agarrava-se a uma almofada contra o peito, temia que os urros que soltava por dentro fossem audíveis para o mundo inteiro. Luciano conseguira mais uma vez reverter o quadro da discussão a favor dele. Tinha esse dom abominável de fulminar as pessoas a partir das cobranças ou acusações que estas por ventura fizessem a ele. Nunca se intimidava facilmente, usava sempre aquela sua arrogância e seu egocentrismo para defender seu mundo irrepreensível, intransponível, e assim, mantinham-no inatingível.
Glória estava de volta à sala da casa em que moravam há pouco mais de dois anos.
Era um fim de tarde de domingo triste apesar do sol. O sol estava frio, suave. Ficou ali estática esperando ser surpreendida por algo que a fizesse voltar a si, tomar prumo dentro do que acabara de ouvir. Aquela verdade dela verbalizada por Luciano de maneira tão sarcástica.
Sentiu-se ínfima, como sempre se sentia depois de cada briga, desde que elas começaram.
Então se surpreendeu concordando com a última frase que Luciano dissera com um tom de voz que demonstrava uma piedosa repulsa. Então ela quis morrer, e essa idéia a tirou de um torpor para jogá-la numa espécie de transe consciente.
Foi até a dispensa que ficava perto do banheiro, ali guardava os materiais de limpeza, e procurou entre os produtos aquele que fosse o mais nocivo caso ingerido. Pegou uma lata pequena de inseticida. Na lata, logo abaixo do nome do produto, uma frase escrita em letras amarelas sobre um fundo verde que dizia “mata tudo!” Glória disse para si mesma: “Ótimo! é para matar tudo mesmo.”
Sem mais pensamentos que dessem margens a cerimônias, ou a arrependimentos repentinos, retirou a tampa vermelha que vedava um pequeno orifício no centro da superfície da lata, e bebeu todo o conteúdo, ou o que suportou, mas teve a impressão de ter esvaziado a lata, devendo ter ali cerca de uns 150mls.
Lembra que começou a ter ânsias de vômito, e sentir a cabeça rodando dentro do som das palavras de Luciano. Aquelas últimas palavras ainda reverberando por toda a casa, fazendo tudo girar alucinadamente... Depois o nada. Escuridão...
A enfermeira que entra no quarto, é uma amiga de trabalho.
Glória era formada em enfermagem, mas nunca se interessara em crescer na profissão que escolhera, estava bem como estava. Funcionária Pública, contratada. Com aposentadoria garantida. Para que mais? A ganância era um grande pecado. Melhor ser humilde.
A enfermeira era nova, uns vinte e poucos anos, esforçada. Chamava-se Araceli. Amiga era maneira de dizer. Conheciam-se há pouco tempo, tinham algumas afinidades, e nascera um pouco de cumplicidade, mais da parte da moça que dela. Glória não era dada a cumplicidades com ninguém.
“Glória, amiga... O que aconteceu? Não, não... Você não precisa falar. Você quase morre – benze-se três vezes – Graças a Deus que o Dr. Luciano voltou do caminho porque esquecera os documentos, e ele lhe salvou. Graças a Deus – benzendo-se mais três vezes – E ele está já chegando. Telefonou e disse que viria do plantão direto para cá.”
Glória entrou em pequeno desespero. Não queria vê-lo e não tinha como impedir que isso acontecesse.
Não pediu para ser salva por ninguém, muito menos por ele. Não podia vê-lo depois de tudo o que se disseram, e ainda mais agora, que ela se mostrava toda ineficiente também para morrer.
Não precisava de mais isso, a presença dele. Compadecido e tolerante. Parcimonioso nas palavras, nos gestos. Com toda aquela sua educada gentileza. Luciano, olhando-a, observando-a, examinando-a todo pragmático. Odiava-o tanto. Mas realmente não tinha como impedir.
Com certeza sofrera uma lavagem gástrica, mas o veneno deveria ter ferido as paredes do seu intestino, e isso lhe causava dores horríveis.
Ela deveria saber – como enfermeira – que era o máximo que conseguiria ingerindo inseticida, uma síncope e nada tão grave que uma lavagem gástrica não amenizasse, e conseqüentemente a salvasse.
A pior coisa para um suicida era o fracasso. ter que conviver com as lembranças do motivo que a levara a esse ato insano e ineficaz. Era a pior nodoa que alguém poderia levar na alma. O que a levava a crer em futuras tentativas, se aquele seu novo recomeço a levasse a uma depressão ainda maior.
“Eu volto mais tarde, na troca do soro. Fique com Deus. Fé! Tenha fé que para tudo tem um jeito...” a amiga calou-se visivelmente cortando o resto da frase, disse isso e a beijou na testa. Glória ouviu o complemento da frase, o que a amiga não proferiu, mas pensou. “Só não há jeito para a morte.” Glória irritou-se silenciosamente com a falta de tato da amiga num momento daquele, pensar em dizer tal coisa.
Quando Araceli saiu do quarto, Glória pensou em como não ter que suportar a presença de Luciano. Estava acima de tudo envergonhada. Sentia-se incompetente. Como se tivesse atentado contra a própria vida apenas para chamar a atenção dele. Com o único intuito de chamar atenção. Sentia-se ridícula também, como nunca se sentira antes... tal qual ele a acusara durante a briga, sentia-se repleta de todas as verdades contidas nas palavras de Luciano em relação a ela. “O que eu sou?” Remoia-se Glória numa busca imediata de respostas que a fizessem continuar como ela era, antes que Luciano a desnudasse toda dentro daquelas acusações infames de tão verídicas.
Será que ela fora covarde a vida inteira? Medíocre a vida inteira? E agora que tinha sido jogada subitamente dentro daquela revelação indubitável, mas não aceitável de pronto, Glória questionava-se apavorada. “O que eu sou?”
Luciano abriu a porta do quarto com uma naturalidade nos gestos tão explícita, que Glória se perguntou se Araceli não teria exagerado quanto à preocupação dele com o estado em que ela se encontrava.
Era assim. Luciano sempre fora assim, profissional. Ele ainda está usando o jaleco, no bolso superior esquerdo, o emblema do hospital em que trabalha como neurocirurgião. As mãos nos bolsos laterais do jaleco. Essa atitude, é a única conotação de alguma tensão. Nos olhos, na voz, tudo soando muito naturalmente tranqüilo, e claro, gentil.
Se Glória pudesse fala nesse momento perguntaria a Luciano se ele estava ali para mostrar a ela o quanto ela era ineficiente para morrer.
Luciano por fim retirou as mãos dos bolsos, examinou o soro, examinou os olhos de Glória, tudo muito profissionalmente, depois começou a caminhar a te a janela. Acendeu um cigarro. Ele não sabia absolutamente o que dizer a Glória. Qualquer palavra mal colocada e... Precisava dizer alguma coisa. O quê?
“Você quer que eu fique, ou você quer que eu vá embora?” Silêncio.
“Desculpe, você pode não querer falar...” Glória mantém-se estática, estátua de sal. Os olhos, cristalizados com o sal das lágrimas que ela se proibia derramar, davam à sua expressão um olhar duro e seco. E o silêncio ainda era tudo o que restava entre eles dois.
Luciano sufocando de vontade de sair dali imediatamente insiste:
“Então façamos assim, se você quiser que eu fique, pisque os olhos uma vez. Se quiser que eu vá embora, pisque duas vezes.” “E então?”.
Glória piscou duas vezes.
“Foi o que eu pensei. Eu quis vir para você saber... Bem, não tem importância. Eu vou estar por perto. Tchau.”
Fechou a porta do quarto atrás de si e recostou-se na parede do corredor, estava bem tranqüilo aquele andar. Envenenamentos são silenciosos. É a morte pisando suave, indecisa... Respirou aliviado.
“Ainda bem que ela não quer a minha presença.”
Mas ficou ali, momentaneamente inutilizado. Descartado como pessoa. Ele naquele momento era o causador daquela loucura dela. Mesmo que tentasse se convencer o tempo todo de que não queria, e nem podia ser engolido pelas loucuras de Glória. Protegia-se o quanto era possível. Mas nunca pensou que ela tentaria uma coisa dessas. Suicídio? Numa pessoa tão católicamente moralista?
“Bem – pensou Luciano quase desconfortavelmente – ela me surpreendeu pela segunda vez em menos de 24hs. Ponto para ela.”

I - Antes de querer a morte

Luciano adentra o espaço e a olha. Um olhar cheio de medo e perturbações.
“O quê ele vê?” Pergunta-se Glória.
Ele vê uma rocha.
Uma rocha na sua intransponível felicidade estática de ser uma rocha. Ele vê essa rocha e teme nunca saber o que é ela. Do quê ela é feita. Então ele desvia o olhar. Seguindo incólume a presença daquela rocha.
Às vezes ela desvia antes. São segundos minuciosamente atentos e eternos como podem ser eternos alguns preciosos e belos segundos na vida quando se deflagra no olhar de uma pessoa alguma mensagem.
Ela desvia o seu olhar para a vida ali fora. Para a habitual posição das coisas rotineiras, e então ela se doa numa morte por dentro, para dentro daquilo que ele está vendo.
Porque Glória pensa saber o que Luciano está vendo nos olhos dela. E o que ela pensa que ele vê, é o que ela mais teme mostrar. Pensa que ele vê o que perturba os seus dias. Pensa que ele pode ver que no fundo ela é uma rocha derretida como metal nocivo. Como se por dentro ela fosse o magma da rocha que está por fora dela, protegendo-a tal qual uma carapaça calcária. Por dentro todos os seus sentimentos estão em quentes convulsões. Derretem-se por dentro. Como se por dentro ela fosse apenas uma poça de mercúrio, com todos os malefícios e os benefícios que ela possui, tudo uma coisa só. Homogênea e quente, em eterna ebulição, em eterna ambigüidade, em eterno conflito...
As coisas estavam assim.
Ela fingia que não sabia que ele fingia não ver o que via nela.
Às vezes Glória irritava-se com isso e nessas horas ela é toda uma rocha. Por dentro e por fora uma rocha magmática, um pequeno vulcão cuspindo pedregulhos entre gestos e palavras.
Pedregulhos pequenos, mas que ela sabia que machucavam, que irritavam, e em alguns momentos era hediondos e odiosos. E aí Glória via – com um olhar maliciosamente vitorioso – a constatação nos olhos de Luciano que diziam: “Eu não sei mais quem você é.”
Noutros dias Glória percebia-se enfraquecida, vencida e demente, e deixava que os seus olhos mostrassem a Luciano o quanto de tudo aquilo era muito frágil e mentiroso. Ela deixava-se ser mostrada em derretimento através dos olhos, para que ele visse e sentisse o que ela estava sentindo verdadeiramente, e então, ela era agraciada com um olhar de profunda compreensão e respeito.
Nessas horas Glória quase poderia acreditar que poderiam ser felizes se realmente se amassem.
Mas os desencontros e as desavenças tornavam-se mais dominantes a cada dia, exilando o diálogo num canto qualquer de um passado abortado. Nem sequer tivera ânimo de construir uma história que pudesse chamar de passado.
Não teriam filhos... Nem amigos em comum... Não tinham nada, a não ser a conveniência do casamento. Uma conveniência utilizada por ambos.

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