sexta-feira, 8 de maio de 2009

Desencandeados os sentimentos afloram.

Talvez "destravados" fosse a palavra certa.
Fato é que, depois de desenterrar aquela lembrança, eu fui voltando lá naqueles dias,
os alegres, em que ganhei - por escolha minha - aquela boneca, fiz roupinhas para ela e a tornei a minha companheira, e os sentimentos profundamente tristes que eu soterrei dentro de mim junto com a lembrança de que um dia eu tive uma Barbye.
Desde que a lembrança foi evocada inadvertidamente, que eu fico voltando lá, naqueles dias, e a cada passo em direção ao passado, vou reavaliando os detalhes e os sentimentos deflorados. Alguns têm um peso insuportável.
Não fico querendo entender o "por que" da minha irmã má ter esquartejado a minha boneca, ela era má e já tinha destruído outros objetos, brinquedos e um boneco - meu primeiro boneco, novinho, ganho num sorteio de dia das crianças na escola onde nós duas estudávamos o primário - então a maldade dela já me era bem "familiar".
Fico esmiuçando, agora, o "porque" de eu nunca ter reagido para impedir nada.
Eu apenas aceitava que ela era mais forte que eu, mais esperta e má.
O único momento para o qual eu consigo voltar de verdade e sentir uma enchurrada de coisas, é o momento em que ela me obrigou a fazer o "enterro" da minha própria boneca, que ela havia destruído.
Eu lembro, por exemplo, da disposição em que estavam os membros esquartejados da boneca dentro da caixa de sapatos onde ela me obrigou a colocá-los.
Lembro muito nítidamente de nós duas naquela rua de barro e mal iluminada, perto da nossa casa, eu levava a caixa segurando-a com as duas mãos, com cuidado para não derrubar, ali dentro estava a minha boneca em pedaços. A minha irmã levava algo para cavar, não lembro o quê.
O sentimento é de impotência e perda. Esses sentimentos anulam a presença da minha irmã, ela passa a ter nenhuma importância, salvo a de ser meu carrasco obrigando-me sob juras ameaçadoras a executar sua vontade macabra. Mas o que move essa vontade dela não é questionado em nenhum momento, para mim, é apenas mais uma maldade dela para comigo.
Depois, vejo o buraco cavado à minha frente. E tudo fica escuro de tão triste.
Lembro que fiquei parada, com a caixa-esquife ao meu lado, no chão, e eu com as minhas mãos postas sobre os joelhos, eu estava sentada sobre as pernas dobradas para trás. Não sei exatamente o que eu esperava, então ela disse "Vai... enterra logo isso!" e eu obedeci, simplesmente.
A outra coisa que me vem muito clara é que eu apenas chorava, muito.

Não contei para ninguém isso. Não adiantaria nada, já estava feito, nada me consolaria, então eu enterrei o assunto, até que ele emergiu lá das minhas profundesas essa semana.
Eu nunca tinha contado isso a ninguém, e nem recontado a mim mesma.
Acho que tem muita coisa amalgamada para ser explorada a partir daqui, dessa lembrança, mas não sei bem como fazer isso.

A minha irmã má,a medida que foi crescendo percebeu que suas maldades a isolavam cada vez mais do resto da família.Hoje ela tem sua própria família, e paga um preço justo, eu diria.
Eu nunca a odiei de verdade por tudo o que ela me causou, principalmente depois que eu deixei de ser tola e medrosa.
No entanto, nunca mais quis brinquedos. Era como seu eu estivesse, a partir dali, dando um basta às perdas.
Mas parece que não. Estava apenas começando a ignorá-las superficialmente.

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