terça-feira, 28 de abril de 2009

II - A Primeira Morte

Havia uma cacofonia ilegível dentro daquele silêncio. Aquele silêncio de paredes brancas e cheiro forte de éter – que ela tão bem conhecia.
Estava entre perturbada e sonolenta, mas a sua memória ia ordenando-se aos poucos, numa lentidão angustiante.
Primeiro era preciso identificar onde estava, para imediatamente respirar novamente o cheiro de éter, e ter consciência de que aquelas paredes brancas claustrofóbicas eram de um quarto de hospital.
Em segundo lugar, com a memória já parcialmente restaurada, Glória se perguntava: “O que estava fazendo ali, sozinha, deitada naquela cama de hospital?”
A cabeça começou a rodar dentro de um redemoinho de palavras desconexas que iam e vinham, num vai-e-vem confuso. Sentia-se fraca e abatida, e estava com uma sede terrível.
Os sentidos começaram a tomar formas e ela novamente podia ouvir o eco das palavras de Luciano. As últimas palavras e o estampido da porta sendo fechada atrás dele, e ela deixada no mais cruel silêncio, e toda comprimida num vazio profundo.
“Eu já sei porque você casou comigo. Para me usar. Você me usou esse tempo todo...”
“Eu não sei do que você está falando Glória.”
“Sabe sim. Mas é covarde demais para admitir.”
“Admitir, o quê?”
“Essa sua doença que você esconde atrás de mim... essa doença que é você gostar de homens...”
“Agora chega! Cala essa boca! Você é uma louca, uma desajustada. Você precisa se tratar...”
“Eu preciso me tratar? Eu? Eu sou íntegramente normal. Você é que é uma anomalia social... uma heresia social... E se casou comigo para ninguém descobrir. Nem família, nem trabalho. Você é tão covarde que você precisou se casar comigo para continuar vivendo na clandestinidade essa sua sodomia. Todo o seu segredo assegurado às custas da minha solidão, das minhas carências. Você me usou e me usa!”
“Ah é...? E você Glória? Casou comigo por que? Porque não queria ficar solteirona. Porque todas as suas irmãs – até as mais novas – já haviam se casado, e você lá, vivendo de hóstia e televisão. Definhando num canto qualquer daquela vidinha ridícula e tacanha em que você vivia confinada. E sabe o que mais? Eu quis fazer de você uma pessoa melhor, mas você sempre se inferiorizando mais do que já era. Sem amor-próprio, sem personalidade própria, sem nenhum pensamento legitimamente seu. A sua solidão quem cavou foi você Glória... Acontece que eu não ia ficar aqui embarcando dentro dessa sua presunçosa integridade, ou seja lá o que for que você chame de integridade para um relacionamento a dois... Você se confinou na mediocridade das coisas a sua volta, eu não. Agora você vem com essa acusação leviana, com essa sua grande mágoa de ter sido supostamente usada? Você acha mesmo que eu sou doente? Você não tem respaldo para me acusar de nada... Você é que é uma covarde, uma doente covarde, é você! Eu não Glória, eu admito que cometi pequenos crimes em nome dos meus planos, meus desejos. Porque eu vivo Glória, e essa é a grande diferença entre nós dois, eu vivo, e você apenas sobrevive. E sobrevive mal, porque você é toda ineficiente para viver Glória.”
Foram as últimas palavras de Luciano.
Enquanto procurava as chaves do carro que ele largara em algum lugar sobre a mesa do seu pequeno escritório, Luciano ainda atordoado com a carga negativa desprendida durante aquela discussão, conseguiu ver por entre as palavras insanas de Glória – pela primeira vez, desde que a conhecera – uma tentativa de ser verdadeira.
Pela primeira vez Glória quebrara aquele invólucro hipócrita que a permitia sentir-se superior a todos. Ilesa aos pecados do mundo. Ele a odiava por isso, mas agora Glória dava vazão a uma impulsividade inédita, ao menos para ele.
Na sala, Glória sentada no sofá cor de telha, agarrava-se a uma almofada contra o peito, temia que os urros que soltava por dentro fossem audíveis para o mundo inteiro. Luciano conseguira mais uma vez reverter o quadro da discussão a favor dele. Tinha esse dom abominável de fulminar as pessoas a partir das cobranças ou acusações que estas por ventura fizessem a ele. Nunca se intimidava facilmente, usava sempre aquela sua arrogância e seu egocentrismo para defender seu mundo irrepreensível, intransponível, e assim, mantinham-no inatingível.
Glória estava de volta à sala da casa em que moravam há pouco mais de dois anos.
Era um fim de tarde de domingo triste apesar do sol. O sol estava frio, suave. Ficou ali estática esperando ser surpreendida por algo que a fizesse voltar a si, tomar prumo dentro do que acabara de ouvir. Aquela verdade dela verbalizada por Luciano de maneira tão sarcástica.
Sentiu-se ínfima, como sempre se sentia depois de cada briga, desde que elas começaram.
Então se surpreendeu concordando com a última frase que Luciano dissera com um tom de voz que demonstrava uma piedosa repulsa. Então ela quis morrer, e essa idéia a tirou de um torpor para jogá-la numa espécie de transe consciente.
Foi até a dispensa que ficava perto do banheiro, ali guardava os materiais de limpeza, e procurou entre os produtos aquele que fosse o mais nocivo caso ingerido. Pegou uma lata pequena de inseticida. Na lata, logo abaixo do nome do produto, uma frase escrita em letras amarelas sobre um fundo verde que dizia “mata tudo!” Glória disse para si mesma: “Ótimo! é para matar tudo mesmo.”
Sem mais pensamentos que dessem margens a cerimônias, ou a arrependimentos repentinos, retirou a tampa vermelha que vedava um pequeno orifício no centro da superfície da lata, e bebeu todo o conteúdo, ou o que suportou, mas teve a impressão de ter esvaziado a lata, devendo ter ali cerca de uns 150mls.
Lembra que começou a ter ânsias de vômito, e sentir a cabeça rodando dentro do som das palavras de Luciano. Aquelas últimas palavras ainda reverberando por toda a casa, fazendo tudo girar alucinadamente... Depois o nada. Escuridão...
A enfermeira que entra no quarto, é uma amiga de trabalho.
Glória era formada em enfermagem, mas nunca se interessara em crescer na profissão que escolhera, estava bem como estava. Funcionária Pública, contratada. Com aposentadoria garantida. Para que mais? A ganância era um grande pecado. Melhor ser humilde.
A enfermeira era nova, uns vinte e poucos anos, esforçada. Chamava-se Araceli. Amiga era maneira de dizer. Conheciam-se há pouco tempo, tinham algumas afinidades, e nascera um pouco de cumplicidade, mais da parte da moça que dela. Glória não era dada a cumplicidades com ninguém.
“Glória, amiga... O que aconteceu? Não, não... Você não precisa falar. Você quase morre – benze-se três vezes – Graças a Deus que o Dr. Luciano voltou do caminho porque esquecera os documentos, e ele lhe salvou. Graças a Deus – benzendo-se mais três vezes – E ele está já chegando. Telefonou e disse que viria do plantão direto para cá.”
Glória entrou em pequeno desespero. Não queria vê-lo e não tinha como impedir que isso acontecesse.
Não pediu para ser salva por ninguém, muito menos por ele. Não podia vê-lo depois de tudo o que se disseram, e ainda mais agora, que ela se mostrava toda ineficiente também para morrer.
Não precisava de mais isso, a presença dele. Compadecido e tolerante. Parcimonioso nas palavras, nos gestos. Com toda aquela sua educada gentileza. Luciano, olhando-a, observando-a, examinando-a todo pragmático. Odiava-o tanto. Mas realmente não tinha como impedir.
Com certeza sofrera uma lavagem gástrica, mas o veneno deveria ter ferido as paredes do seu intestino, e isso lhe causava dores horríveis.
Ela deveria saber – como enfermeira – que era o máximo que conseguiria ingerindo inseticida, uma síncope e nada tão grave que uma lavagem gástrica não amenizasse, e conseqüentemente a salvasse.
A pior coisa para um suicida era o fracasso. ter que conviver com as lembranças do motivo que a levara a esse ato insano e ineficaz. Era a pior nodoa que alguém poderia levar na alma. O que a levava a crer em futuras tentativas, se aquele seu novo recomeço a levasse a uma depressão ainda maior.
“Eu volto mais tarde, na troca do soro. Fique com Deus. Fé! Tenha fé que para tudo tem um jeito...” a amiga calou-se visivelmente cortando o resto da frase, disse isso e a beijou na testa. Glória ouviu o complemento da frase, o que a amiga não proferiu, mas pensou. “Só não há jeito para a morte.” Glória irritou-se silenciosamente com a falta de tato da amiga num momento daquele, pensar em dizer tal coisa.
Quando Araceli saiu do quarto, Glória pensou em como não ter que suportar a presença de Luciano. Estava acima de tudo envergonhada. Sentia-se incompetente. Como se tivesse atentado contra a própria vida apenas para chamar a atenção dele. Com o único intuito de chamar atenção. Sentia-se ridícula também, como nunca se sentira antes... tal qual ele a acusara durante a briga, sentia-se repleta de todas as verdades contidas nas palavras de Luciano em relação a ela. “O que eu sou?” Remoia-se Glória numa busca imediata de respostas que a fizessem continuar como ela era, antes que Luciano a desnudasse toda dentro daquelas acusações infames de tão verídicas.
Será que ela fora covarde a vida inteira? Medíocre a vida inteira? E agora que tinha sido jogada subitamente dentro daquela revelação indubitável, mas não aceitável de pronto, Glória questionava-se apavorada. “O que eu sou?”
Luciano abriu a porta do quarto com uma naturalidade nos gestos tão explícita, que Glória se perguntou se Araceli não teria exagerado quanto à preocupação dele com o estado em que ela se encontrava.
Era assim. Luciano sempre fora assim, profissional. Ele ainda está usando o jaleco, no bolso superior esquerdo, o emblema do hospital em que trabalha como neurocirurgião. As mãos nos bolsos laterais do jaleco. Essa atitude, é a única conotação de alguma tensão. Nos olhos, na voz, tudo soando muito naturalmente tranqüilo, e claro, gentil.
Se Glória pudesse fala nesse momento perguntaria a Luciano se ele estava ali para mostrar a ela o quanto ela era ineficiente para morrer.
Luciano por fim retirou as mãos dos bolsos, examinou o soro, examinou os olhos de Glória, tudo muito profissionalmente, depois começou a caminhar a te a janela. Acendeu um cigarro. Ele não sabia absolutamente o que dizer a Glória. Qualquer palavra mal colocada e... Precisava dizer alguma coisa. O quê?
“Você quer que eu fique, ou você quer que eu vá embora?” Silêncio.
“Desculpe, você pode não querer falar...” Glória mantém-se estática, estátua de sal. Os olhos, cristalizados com o sal das lágrimas que ela se proibia derramar, davam à sua expressão um olhar duro e seco. E o silêncio ainda era tudo o que restava entre eles dois.
Luciano sufocando de vontade de sair dali imediatamente insiste:
“Então façamos assim, se você quiser que eu fique, pisque os olhos uma vez. Se quiser que eu vá embora, pisque duas vezes.” “E então?”.
Glória piscou duas vezes.
“Foi o que eu pensei. Eu quis vir para você saber... Bem, não tem importância. Eu vou estar por perto. Tchau.”
Fechou a porta do quarto atrás de si e recostou-se na parede do corredor, estava bem tranqüilo aquele andar. Envenenamentos são silenciosos. É a morte pisando suave, indecisa... Respirou aliviado.
“Ainda bem que ela não quer a minha presença.”
Mas ficou ali, momentaneamente inutilizado. Descartado como pessoa. Ele naquele momento era o causador daquela loucura dela. Mesmo que tentasse se convencer o tempo todo de que não queria, e nem podia ser engolido pelas loucuras de Glória. Protegia-se o quanto era possível. Mas nunca pensou que ela tentaria uma coisa dessas. Suicídio? Numa pessoa tão católicamente moralista?
“Bem – pensou Luciano quase desconfortavelmente – ela me surpreendeu pela segunda vez em menos de 24hs. Ponto para ela.”

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