terça-feira, 28 de abril de 2009

III - Convalesença

A vida em si é drástica. Glória bem o sabia agora. Ao menos a vida dela assim era, medíocre e drástica, sem que ela estivesse apta a perceber o grau de intensidade, e sanar a tempo de não sucumbir àquela sua vida tão drástica e medíocre.
O que fazer a não ser resignar-se com as fatalidades de Deus? Um Deus que É de um amor fatal, maniqueísta. Um Deus capaz de provocar o sofrimento nas suas próprias criaturas, afim de levá-las a implorarem ou blasfemarem em Seu santo nome.
Estava de volta à vida comum a todos. Ela era uma “sobrevivente” como afirmara Luciano.
Com as mãos protegidas por um par de luvas de borracha antialérgicas amarelas, Glória começava uma completa faxina na sua casa. Dispensara a diarista. Fazia questão de ela mesma retirar todas as sujeiras, inclusive àquelas escondidas nos cantinhos mais segregados da casa. Tapetes. Todos retirados. Não queria mais nenhuma sujeira indo se esconder por dias a fio sob os tapetes. Aliás, eles, os tapetes não voltariam a fazer parte da decoração da casa. Escondem e acumulam tudo, além de pó.
Glória tirara uma licença no hospital. Licença médica. Stress foi o diagnóstico respaldado por Luciano, que muito inteligentemente – e até gentil da parte dele – inscreveu-se de última hora num congresso de medicina nuclear.
Aconselharam-na a viajar um pouco. Visitar os parentes no interior. Ir para uma praia. Mas Glória, ainda na cama do hospital, antes de ter alta, já planejava fazer essa faxina na sua casa. Não sabe ao certo de onde viera aquela idéia. Mas sentia que a reestruturação da sua vida teria que começar por sua casa. Começou a planejar também pequenos concertos que vinha adiando por falta de tempo. Pensou na decoração. Uma total ausência das preferências de Luciano na escolha dos móveis, utensílios, cores das paredes.
Tudo era de acordo com as escolhas dela. Do tapete na porta da entrada à marca da máquina de lavar roupas. Luciano cuidou apenas da decoração do seu escritório, que só agora Glória se dá conta do quanto destoa do resto da casa. Tanto na decoração quanto na organização.
Não conseguia imaginar como Luciano conseguia encontrar alguma coisa naquele ninho de papéis, livros, marca-textos, lápis, canetas, cd’s, roupas... E, no entanto, com toda essa desordem abusiva, era um cômodo da casa onde se respirava um que de tranqüilidade. Não tranqüilidade propriamente dita, mas uma quietude imune àquele caos.
Pegou de uma vassoura de espanar e começou a faxina pelo teto. A pintura branco-pérola e o lustre herdado de sua tia Magnólia fixado no teto, davam um ar de teto de casa antiga invadindo a modernidade do resto da mobília da sala de estar. Num futuro próximo ela mandaria que ele fosse retirado e o guardaria até devolvê-lo à sua irmã Socorro, que sempre o cobiçou como presente de casamento.
“Não sou feliz comigo mesma.”
Era o pensamento de Glória enquanto espanava e retirava as teias de aranha do lustre empoeirado.
Não era feliz com ela mesma. Não se sentia gente para si mesma. Sabia – até onde alcançava seu novo interesse por si mesma – que cuidava de si mesma, e cuidava numa vigilância repleta de péssimos exemplos recolhidos entre parentes e amigos.
Mantivera-se protegida de tudo e de todos, para ter como se proteger de si mesma. E não havia nem o mais doce ou remota lembrança de ter sido feliz com si mesma, tão empenhada estava em observar os erros e falhas dos outros, numa intransigente determinação em aprender a não cometer tais erros e falhas, mantendo-se assim num patamar de moral insuspeita. Agora percebia que o nome disso também poderia ser hipocrisia.
Mas é que quando sucumbiu numa loucura inócua carregou junto com ela todo aquele confuso e indefinível sentimento.
Foi uma queda profunda no desconhecido abismo do desencanto. Um quê de abandono enraizando-se no coração até torná-lo coberto em demasia para continuar fazendo parte da alma, e apenas a sua função muscular continuava em reverberações ecoadas, o fazendo manter-se pulsante, sufocado e pulsante. Um coração todo contido dentro da própria força. A força que tem um coração quando endurece.
Queria ter-se reerguido ao menos limpa e amadurecida, um pouco que fosse qualquer mudança por mais sutil que fosse, daria a ela um pequeno mérito de amadurecimento.
E limpa. Sem nenhum resquício, nenhuma fagulha, nem um grão da sujeira que tinha causado aquela queda abissal, manchando seus dias, Todos os dias em que mentira sentir uma felicidade comum. Dessas felicidades que todo mundo tem um pouco para mostrar todos os dias, e confirmar todos os dias que “Sim, se é feliz!”.
E aquilo a perseguia durante a noite. Quando ela enfim envolta na escuridão de si mesma, tirava aquela felicidade muito comum e normal. Ela se despia de todos os seus insuspeitáveis disfarces e via-se na sua dor explicitamente.
Toda aquela dor crua de um fruto que nasceu morto. Aquele sentimento que sentia por Luciano era dúbio porque ele já nascera morto, natimorto.
Glória nessas horas sentia suas entranhas se contraírem em câimbras que reprimiam ínfimos e infames desejos. Tão secretos, proibidos, insanos e nocivos, que o corpo debilitava-se a ponto de deixá-la cansada demais até mesmo para dormir.
Ah, dormir... Dormir era como morrer. E na manhã seguinte acordar ressuscitando tudo novamente, num movimento ciclicamente cansativo, tão cansativo...
Porém, nessas horas o corpo não obedecia, e ela não dormia. E aí então, outras emoções muito mais secretas, proibidas, insanas e nocivas realimentavam o fel de cada um dos sentimentos, e ela sofria por cada um deles. Os bons e os ruins, porque todos eles já nasciam mortos.
Não dormia, nem morria. Ficava ali, isolada no seu ressentimento do mundo e da bondosa crueldade de Deus, que parecia assistir a tudo meneando a cabeça positivamente, com um olhar que não se poderia distinguir entre piedoso ou irônico.
Não. Enfim havia chegado à tona de si mesma. Sentira-se a principio ilesa e limpa, mas não. Era superficial aquela sensação de vitória sobre si mesma. Lá dentro – firmemente agarrada nas raízes do coração, ainda mais endurecido – estava a consciência do sentido real daquela sensação de vitória.
E essa vitória era apenas um daqueles resquícios de ódio, desprezo e crueldade, que agia como bálsamo catalisador de emoções.
Lá no fundo ela sabia-se vencida, e isso remetia à derrota, ao fracasso, à autocomiseração. Tudo se alimentando de quaisquer sobras. Uma vez alimentados, tornavam-se fortificante para as raízes que endureciam cada vez mais o coração, de onde vinha um urro de dor causada por esses venenos internos. Glória podia ouvir dentro desses urros – amedrontada com si mesma, por ser capaz de produzir tais pensamentos - um apelo de vingança como único antídoto capaz de salvar o coração do total endurecimento.
Em silencioso desastre sentia a dor da certeza de que tudo enfim ruíra.
Não restara para ela mais que aquela certeza doendo e a fazendo – confusa – determinar que nova pessoa ela iria permitir que saísse dela encobrindo toda aquela dor de não saber o que ela era. Uma nova pessoa sairia de dentro dela escondendo as ruínas da alma. Escondendo aqueles seus pequenos e hediondos crimes. Dentre eles, aquela negação de si mesma, aquela repulsa clemente de si mesma.
Estava só e só... Como deve ser só a alma de quem sente que vai morrer só. Só, como quem acorda sob os escombros do que um dia fora o seu reino, seu domínio. Toda a sua certeza reduzida a escombros angustiantes de coisa concreta que se desfez, mas mantém-se existente. Existindo sem serventia para quem servia, e ali... Existindo. Fazendo ainda parte da memória recente dos dias de serventia. Precisava então transpor tudo para um canto onde um dia pudesse reconstruir-se com o que sobrou de si.
Reconstruir. Restaurar.
Precisava reconstruir a si mesma. Restaurar a vontade das coisas tolas e rotineiras, as horas, os cuidados com todas aquelas coisas já tão postas e sobrepostas, apenas esperando a exploração dos dias.
Há dias Glória não falava com ninguém. Pouquíssimas pessoas souberam do seu “incidente” – como denominou e justificou tão apropriadamente bem, Luciano. Ninguém além de Glória, ele, a enfermeira que a atendeu e a direção do hospital em que ela trabalhava. Calou-se complacente com tudo.
Dentro daquele seu silêncio – também – se calavam em murmúrios seus mais recentes fracassos.
Falhara tanto. Ela já devorara tantas chances de se tornar eterna para alguém. Sempre se prometendo nunca mais, nunca mais...
Agora havia uma esperança incrédula de que enfim chegara aos limites de seus erros e enganos. Havia sim – e sempre houvera – aquela esperança de enfim sobreviver àquela dor, como uma benção curativa e tentar seguir – mesmo que claudicante – sendo uma nova pessoa naquele corpo já acostumado e aceito por todos.
Mas não sabia se teria coragem de seguir sendo seu oposto. Não saberia como seria recebida, e se recebida, será que seria assim aceita? Sem questionamentos, nem surpresas inquietantes, nem perguntas constrangedoras que invariavelmente fragilizariam aquela nova pessoa em que ela se apresentaria.
E talvez, não a acreditassem quando ela respondesse simplesmente:
“Esse é o meu oposto, é assim que sou do outro lado do espelho. Sou eu. Eu sou isso. Sou essa. Sou assim.”
E pior que as perguntas, pior que tudo, seria o descaso, a aceitação rápida demais. Como se todos já a tivessem visto usando aquela faceta de ser a outra pessoa que ela acreditava ser. Ou como se fosse mais uma mera crise de identidade que passaria tão logo ela resolvesse que de nada adiantaria disfarçar-se dela mesma. Pois que em seus olhos todos saberiam ler seus pecados e suas quedas. Tão claramente. Tão claro quanto pode ser claro um dia de luz e calor. Um desses dias de claridade que incentiva tudo a despertar, e recomeçar a contagem do tempo por entre uma coisa e outra a acontecer inevitavelmente.
De repente sentira a inutilidade enfadonha de tudo. Uma inutilidade quase tardia, como tardia era a sua esperança desesperada – e seu medo em ultimar seus anos tricotando sozinha na solidão familiar das tias – quando se casara aceitando as condições de uma solidão maior, porém não visível a olhos nus e comprobatórios. A esses olhos ela seria enfim uma mulher realizada.
Ria-se sempre muito triste intimamente da cegueira de todos, pois, continuara indizivelmente só.
Glória pensava-se muitas vezes, ínfima. Tão – realmente – ineficiente para estar viva. Copiando-se e copiando-se por dias e dias, anos a fio. Apenas sobrevivendo ao tempo que era conferido a ela para permanecer viva...
Nem mesmo chegava a ser um complexo de inferioridade, que era preciso ter tido alguma vez, uma noção correta do que era inferioridade. Não era inferior moralmente, ou religiosamente, ou etnicamente. Não. Não era esse conceito de inferioridade a que se referia. Era como uma falta de conhecimento de si mesma. Porque nunca se permitira ser ela mesma. Um individua.
Vivera até ali, introduzindo como conceito individual seu, o que apenas vira ou ouvira ser pronunciado como bom e correto, sério e justo de acordo com as instituições sociais. Tinha sido essa a vida que sobrepôs sobre a sua própria vida, e como uma cópia carbonada, era assim a sua vida.
Parecia a Glória que não havia mais nada a fazer a não ser deixar explodir o gênesis da sua alma.
Como se fosse urgente e necessário voltar ao pó ainda viva. E recomeçar por si mesma.
Era uma necessidade insuportável de recomeçar de algum ponto que a fizesse sentir – como não lembrava de jamais ter sentido – que havia ainda naquele seu corpo, algum lugar onde ela poderia desmanchar-se em pó, e deste pó mortuário, ela extrairia um pó viçoso a devolvê-la viva para a vida.
Sem que ela percebesse, o dia chegara ao fim dentro do destilar das horas.
Estava exausta. Mas a casa estava irrepreensivelmente limpa. Estava exausta e satisfeita. Em alguns dias procuraria um profissional para as pequenas reformas que já havia planejado. Veria orçamentos e disponibilidades de tempo. Não tinha pressa. Faria aos poucos pequenas reformas, quase imperceptíveis. Mudaria a mobília também, aos poucos. O lustre iria para as mãos de quem sempre o cobiçara.
Os tapetes seriam vendidos ou doados, alguns móveis seriam reformados apenas.
Estava exausta e vazia. E a casa estava limpa.

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